quinta-feira, 25 de novembro de 2010

A Recuperação pelo Sofrimento


Longe de mim ficar batendo sempre na mesma tecla (mentira; eu praticamente vivo sentado nela. Relevem), mas as convulsões econômicas que começaram em 2008 ainda não tem data para terminar. Aliás, as medidas oficiais tomadas pelos países mais afetados parecem feitas sob medida para garantir que o ciclo de catástrofes se repita; arrochar a maior parte da população e expandir o poder dos bancos e do setor financeiro.

O receituário oficial é tristemente familiar para nós brasileiros: os países afetados devem arrochar salários, diminuir ou extinguir programas sociais e previdência, privatizar o que é público e manter os bancos à tona custe o que custar. Para os mesquinhos, seria até uma satisfação ver países desenvolvidos tendo que fazer a mesma dança da chuva que nós, patetas sulamericanos, tivemos que repetir tantas vezes no século passado. Mas a desgraça alheia não nos enriquece, e o próprio fato desta ortodoxia econômica ainda existir e exigir respeito nos empobrece e ameaça a todos. Para saber onde ela leva, basta entrar no túnel do tempo e ir até a Argentina em 2001-2002.

É algo impressionante e um tanto tétrico que praticamente todos os países que lograram sucessos ao tentar fugir do subdesenvolvimento o fizeram indo diretamente contra estes preceitos, que costumavam ser “do FMI” e agora são aparentemente globais. Coréia do Sul, China, Índia e até mesmo o Brasil só começaram a sair do ciclo vôo-de-galinha/crise fiscal/vôo-de-galinha quando investiram em produção estratégica, criação de classes consumidoras internas e controle de artimanhas financeiras. São exemplos que não são citados, ou aparecem apenas de forma parcial, pois a ortodoxia não admite alternativas.

Até mesmo a Alemanha, a potência que foi menos afetada pela crise, é editada para fora dos comentários e análises. A existência de uma potência industrial e educacional onde os salários são altos, o Estado presente e a loteria das Bolsas e Fundos é praticamente abolida não interessa aos fundamentalistas do Mercado Livre. Os países escandinavos, então, inexistem. Desenvolvimento, diz a ortodoxia, só com imposto zero, salário de prisioneiro chinês e liberdade total do setor financeiro para fazer os malabarismos que lhe aprouverem.

O pacote de ajuda à Irlanda, anunciado ontem, parece até uma pegadinha; pilhas de dinheiro para ajudar exatamente os agentes das altas finanças que detonaram e agravaram o colapso. Em troca, o país se compromete a apertar o contribuinte e os setores que de fato produzem renda e mercadorias, que nada tiveram a ver coma história. Insulto final, a recompensa prometida é mais dinheiro para os bancos...desde que eles possam provar que não precisam de dinheiro algum. Geralmente, atingir esse tipo de raciocínio requer grandes quantidades de ópio de uma qualidade invejável.

De certa forma, é uma revelação reconfortante; os espertalhões que nos quebraram tantas vezes no passado não tinham nada pessoal contra nós. Era just business, rapaziada. Quando paramos de morder a isca, eles passaram a aplicar os mesmos truques em seus conterrâneos americanos e europeus, sem rancor mas também sem piedade. Maquiaram títulos imobiliários podres como fundos AAA para Grécia, Reino Unido e Irlanda com a mesma eficiência que usaram para levar quase tudo que valia alguma coisa na América Latina em troca de junk bonds e empréstimos com juros extorsivos.

Não aparece, em lugar nenhum, qualquer menção de punir os responsáveis ou construir salvaguardas para evitar que esse tipo de bolha especulativa se repita. Aliás, o contrário é verdadeiro: bancos de ‘investimento’ como a Goldman Sachs receberam a fatia do leão do apoio e pagam bônus milionários aos seus executivos, enquanto o desemprego nos países afetados segue alto e perene. Da maior sequência de fraudes na história das finanças globais não irá resultar um único e solitário processo. O sofrimento do ajuste é reservado apenas para a população.

Faz sentido; só a dor ensina e redime, alguns dizem. Mas não tem que ser necessariamente a dor dos culpados, garantem os ortodoxos.

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sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Pausa Cult : Donnie Darko

Fala-se muito sobre grandes filmes, e com razão. Mas e os grandes momentos perdidos em filmes medianos ou apenas bons?

Donnie Darko foi a primeira aventura de direção de Richard Kelly, um escritor de roteiros. Não foi um sucesso – ele teve que voltar a escrever para os filmes de outros por anos até ter outra chance. Mas apesar de dar prejuízo no lançamento, ganhou rapidamente uma platéia mundial que se identificou com a trama ilógica, a trilha sonora perfeitamente escolhida e os mindfucks do estilo. Trata-se, afinal da história de um adolescente perturbando, seu amigo (um coelho-demônio) e o fim do mundo.

Resultado: assim como os Engenheiros do Hawaii, Kelly passou a ser adorado por uma minoria entusiasmada e odiado visceralmente pelo resto do mundo ocidental. De qualquer forma, Donnie Darko vale ser assistido, nem que seja para que você finalmente escolha seu lado.

A cena de introdução da escola é, talvez, uma das mais belas da década que passou; um panning que alterna entre lento e rápido, da entrada do prédio até o pátio, namorando o cenário e os personagens da vida adolescente: o parasita valentão, os losers sem amigos pelos cantos, as rodinhas de colegas, a professora fanática por slogans baratos de auto-ajuda, a fofoca e as trocas de olhares do corpo docente, a doçura desajeitada das meninas treinando passos de dança. Tudo encaixado sem incidente na trilha sonora, com sincronia magistral. Exageros, sim (o delinqüente oficial dando cafungadas no meio do corredor? Drew Barrymore e seu vácuo cranial como professora de qualquer matéria?), mas deixemos os documentários para Michael Moore: quando se trata de ficção, muitas vezes a caricatura é o retrato mais honesto possível da realidade.

Agora a parte chata: falar mal. Os enólogos dizem que se você adicionar uma gota de vinho fino em um barril de merda você tem um barril de merda. Caso adicione uma gota de merda em um barril de vinho fino...você obtém um barril de merda. E existe uma gota de lodo na mistura de Donnie Darko que não pode ser negada, nem relevada.

Filmes são por definição meios autocontidos. A apresentação precisa dar ao espectador os instrumentos básicos para poder entrar na história de forma consciente: personagens, contexto, ritmo, definições. Donnie Darko escolhe não fazer isso; sem ler o site do filme e as longas explicações do diretor, uma parte central da história fica sem explicação, uma charada cuja resposta não faz sentido.

O roteiro, para ser entendido, depende de elementos que não apenas são exageradamente sutis – muitos dos elementos nem sequer estão nos 113 minutos do filme. É como vender um quebra-cabeças com 10% das peças faltando; não é mistério, é trapaça.

Pior: talvez essa muleta, a parte ruim, seja o verdadeiro Kelly. Seu filme mais recente, Southland Tales, é talvez a melhor comédia não-intencional já produzida: um tijolo de mais de duas horas de teorias conspiratórias, ideias fora de lugar e excesso de estilo com substância duvidosa, que precisam de um livro à parte para serem compreendidas e mesmo assim não convencem.

A grandeza às vezes é mero acidente.

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