sexta-feira, 15 de abril de 2011

Uma Confissão

Hora de lembrar fatos desagradáveis.

No pós-furor do terrível massacre escolar do Realengo, depois do choque, da raiva, e da angústia, um sentimento sobrou depois dos demais.

Alívio.

Mais estranho ainda, um alívio duplo. Primeiro, porque, com um pouco menos de sorte e algumas decisões diferentes, poderia ter sido eu cometendo uma sandice desse calibre, anos atrás. Em segundo lugar, porque novamente com um pouco de azar, eu poderia ter criado um ou mais assassinos escolares.

Eu já vi essa nuvem por cima e por baixo. Já fui vítima de bullying. Já fui o bully também, transformando a vida de alguns pobres coitados em um inferno.

Essa transição não é incomum. A melhor forma de subir degraus na escada social é achar um alvo mais tentador do que nós mesmos e expô-lo ao ridículo diante dos colegas. Esse princípio também vale bem longe das salas de aula, em muitos locais de trabalho. O ser humano é uma merda.

Não vou dizer o que faziam comigo, até para não dar idéias para os sádicos da geração atual. De certa maneira, os detalhes não importam; a exclusão é geralmente pior do que as crueldades em si.

Para o bully e sua galera, a diversão dura aquele momento e o reforço de confiança , um pouco mais. Para vítima, é um ciclo sem fim. Para cada indignidade real que o bully causa, o coitado vai infligir dez outras em si mesmo, revivendo cada evento vergonhoso múltiplas vezes. Geralmente em silêncio, pois admitir esse nível de fracasso social seria uma humilhação ainda mais suprema.

Nas savanas da África, às vezes os rebanhos de zebras deliberadamente excluem uma do grupo, sem motivos aparente. Talvez ela tenha o cheiro errado, algum tique estranho. Seja o que for, ela é alienada pelas demais, e geralmente morta a coices com uma violência tão completa como casual. Será que era o meu caso?pensava eu. Talvez o problema não fosse que os valentões fossem canalhas sádicos, mas sim que eu fosse de alguma forma errado, um produto defeituoso que os outros tinham razão em rejeitar. Essa dúvida, em si, doía pior que qualquer crueldade direta, e durava muito, muito mais.

Ajuda dos pais? Nem pensar. Eu teria morrido, fisicamente morrido, antes de admitir para meu pai que o seu filho era motivo de risada. Teria pulado, sorrindo, dentro de uma turbina de Itaipu. Usado arame farpado como fio dental. Ouvido 20 minutos de um CD do Restart.

A adolescência é justamente quando começamos a contestar os laços coma família e tentamos formar relações duradouras fora de casa. Ter que engatar a ré após um fracasso é voltar à infância, da forma mais infeliz possível.

Como já disse, eu tive sorte. Consegui fazer uma triangulação, ficando amigo de amigos dos bullies e conquistando um pouco de paz. Mas a coisa não acabou aí.

Ao ver-me modestamente popular, não tive a decência de deixar os menos afortunados sossegados. Nunca cheguei a bater em ninguém, mas acredito que os alvos dos meus insultos talvez preferissem ter levado socos e pontapés. E eu não era um dos piores nesse sentido. Era impressionante na época, e ainda me choca hoje, o nível de frieza e sofisticação dos ataques. Não era incomum que algum dos garotos mais solitários e excluídos fosse (falsamente) convidado e entrar em um grupo, achando finalmente ter feito amigos, para ser em seguida traído e exposto como um otário na frente de toda as pessoas que, na época, eram o seu mundo todo fora de casa.

Lembro especialmente de uma ocasião, na qual um dos ‘cristos’ sofredores de uma das salas do colégio aproximou-se do meu círculo de amigos; tinha comprado um vídeo-game igual ao que nós jogávamos, e estava (obviamente, tristemente) esperançoso de que isso fosse uma ponte para ser aceito. Meu amigo fuzilou-o verbalmente com uma finesse impecável, uma delivery irônica de fazer inveja ao Rafinha Bastos: “Muito legal. Agora você tem algo para jogar com seus amigos imaginários.” Dupla crueldade, lembrando o infeliz do próprio status de perdedor (sem losers, como seríamos winners?) ao mesmo tempo em que o rejeitava. Na hora, quase parti uma costela rindo, mas depois esse incidente foi uma das coisas que me fizeram parar. Infelizmente, não foi só altruísmo. Com um círculo firme de amigos e mais confiança, vi que não precisava mais usar os outros como escada.

Quantos deles não devem ter sonhado em passar a mão em uma arma e eliminar os bastardos-mirins imperdoáveis que estavam lá, onipresentes, quatro horas por dia, cinco dias por semana. Muitas vezes ao longo de anos e anos transformando o cotidiano em um pesadelo? Certamente eu, enquanto vítima. Nunca cheguei ao ponto da violência, felizmente, mas nos piores momentos, se eu pudesse apenas ter acionado um botão, como quem apaga um arquivo de computador, e feito os bullies sumirem da face da Terra, eu teria quebrado o dedo apertando-o.

Bate com freqüência uma vontade de rastrear minhas antigas vítimas, conversar, pedir desculpas. Não sei até que ponto danifiquei suas vidas. Por diversas razões, nunca dei o primeiro passo. Talvez por vergonha. Mas principalmente, porque tenho medo de que, caso peça desculpas, elas me perdoem.

E o que eu fiz, e tantos outros fizeram e fazem, não merece essa cortesia.
.

quarta-feira, 6 de abril de 2011

Bolsonaro é o Futuro

Ou pelo menos parte do futuro. É inevitável.

Foi assim nos EUA. Após 20 anos de progresso no pós Segunda Guerra que viram o nascimento de um país de classe média e finalmente uma sociedade sem apartheids legalmente definidos, o rancor da massa conservadora, que sempre foi a verdadeira dona do país em suas fantasias, embora não na realidade (mas o poder da fantasia política nunca pode ser subestimado) passou a ser uma cultura em si. Que Nixon explorou com uma maestria faustiana.

De repente, os racistas do Sul não eram mais caipiras ultrapassados: eram gente honesta querendo respeito a suas tradições. Não eram a favor do apartheid, apenas não queriam o poder federal lhes dizendo como viver. A culpa era dos outros, se intrometendo em suas vidas.

Servir esse rancor passou a ser uma vertente política muito bem sucedida. É fácil agradar alguém quando tudo que se pede é que você odeie as mesma pessoas que ele. Quando se divide uma sociedade em dois, vale tudo para não perder para o outro. Não importa se o seu candidato é pilantra, se não cumpriu promessas, se tem programas que são ativamente nocivos ao seu interesse. Escolher o outro é impensável, uma traição de classe.

Quer reclamar? Então você é um dos arautos do Politicamente Correto, essa censura broxa que serve apenas para legitimar seus oponentes, uma curiosa Gestapo sem armas, cachorros, cassetetes ou apito.

A alcunha de 'politicamente correto' já nasceu como uma maldição. Nunca foi usada de forma positiva, e desde a hora zero ser 'politicamente incorreto' era a ordem do dia. Nunca foi tão fácil ser rebelde sem arriscar nada, já que o alvo por definição está em outra camada social, outra cor, outro país...enfim, outro.

Arranhe a casca de um suposto herói esbravejando contra o politicamente correto e você encontrará um cuzão se fazendo de vítima. Sim, ele pode estar negando a dignidade e/ou identidade alheia, mas ele é o oprimido. Nas sábias palavras de Homer Simpson, "Por que ninguém tolera a minha intolerância?"

Esse é o apelo de Bolsonaro e afins: ele redime as nossas cuzices e às transforma em pequenos triunfos morais: Aquele moleque meio afeminado que você humilhou na oitava série? Ele merecia. Você fez um favor a ele e à sociedade ao maltratá-lo. Destratou um negro ou um nordestino em uma briga besta no estacionamento ou na fila do mercado? Ele provavelmente tem uma família de parasitas em algum lugar, torrando Bolsa Família às suas custas.

"Ética não é ensinar alguém a ser bom. É a forma de ajudar boas pessoas a fazer boas escolhas quando a escolha ideal não é clara." -Simon Blackburn
.