Existe uma música...bem, na verdade, existe uma caralhada de músicas. Mas tem uma em especial, de um dos grandes autores musicais da nossa era, Leonard Cohen. Chama-se ‘Famous Blue Raincoat’ e é basicamente a transcrição de uma carta real que ele enviou. Simples, sem rimas, é a história de como ele perdoa seu ex-melhor amigo após este ter tido um caso com sua esposa, que ele também já havia perdoado.
Quem faz isso? Faço amigos em slow-motion, por isso odeio perdê-los; posso imaginar o baque que é perder o melhor amigo e a mulher amada em um único golpe, o vazio que deve ficar. Mas existem limites.
Errado. Na prática, o perdão engloba tudo. Vai contra a totalidade do orgulho, da razão, até, aparentemente, da decência. Se ainda fosse um parvo, um corno inocente inocente sendo passado para trás, ainda faria sentido. Mas não: como a carta deixa claro, ele tem plena consciência do que foi feito contra ele. Parece até meio puto consigo mesmo por estar estendendo a mão:
O que posso te dizer,
Meu irmão, meu assassino?
O que me resta falar?
Que acho que sinto tua falta,
Que acho que te perdoo
Que estou feliz de você estar no meu caminho?
Na verdade, ele até provoca o amigo recém-perdoado, perguntado se haverá reincidência:
Se você algum dia voltar para cá
Pela Jane ou por mim,
Bem, seu inimigo está dormindo
E a mulher dele está livre
A nossa cabeça não aceita isso. Preferimos a tese do corno manso, do crime sem perdão, do altruísmo falso ou mal-informado. A alternativa, de que nós mesmos poderíamos ser melhores, fazer escolhas que são claramente mais éticas, atrasaria nossa vida, roubaria nosso sono.
Outro exemplo.
No ótimo filme O Último Rei da Escócia, o protagonista Nicholas Garrigan, um médico garotão porraloca, vai parar no Uganda, trabalhando com um casal de outros médicos brancos em uma missão de assistência. O marido é praticamente um santo, um novo Buda se multiplicando em oito para atender à população carente, educar pais sobre saneamento, ir buscar medicamentos através de regiões perigosas, enquanto a esposa-doutora apenas acompanha o ritmo. Garrigan, louco para traçar a doutora loura, aproveita quando o marido sai em busca de remédios para tentar seduzi-la. Ela faz jogo duro, dizendo que ama e admira o marido, mas ele percebe que tem algo que ela não está dizendo e aperta o cerco:
-“Você ama ele...mas...?”
-“Mas de vez em quando, estar junto de alguém tão bom faz eu me sentir um lixo”.
É uma das melhores cenas do filme, e uma das menos valorizadas. Como na canção de Cohen, capta um traço humano importante: a bondade, após um certo nível, começa a parecer algo alienígena, quase nojento. Ofende a nossa auto-estima.
Da ficção, passamos ao fato. Lembro quando eu era moleque, das iniciativas do Betinho, irmão do cartunista Henfil, para diminuir ou erradicar a subnutrição no Brasil. Arrecadou toneladas de alimentos no país inteiro, foi capa de revista, ganhou visibilidade. Com a aparência ossuda de hemofílico, olhar de mártir resignado, ele parecia até esteticamente um dos flagelados por quem lutava. Mas depois do primeiro momento, passou a incomodar. A galera doou um saco de arroz, se sentiu bem, e daí em diante preferia esquecer o assunto, cuidar de seus problemas.
Betinho queria mais. Ações episódicas eram só uma solução temporária, claro. Ele queria um comprometimento maior, um investimento real e de longo prazo em uma camada da sociedade que, para a maior parte do público era de outra classe, outra cor e praticamente de outro planeta. Esperava algo de nós.
Começou a encher o saco.
Descobriu-se então que ele havia aceitado doações de bicheiros. Júbilo geral! O santo não era tão santo. Nossas pequenas canalhices e egoísmos não eram mais contrastados com um exemplo abnegação total. Se todos são bandidos, não vou ser eu o único otário a ser altruísta! Posso dormir em paz. Betinho morreu uma figura apagada e foi esquecido rapidamente.
Não foi o primeiro, não será o último. Santos religiosos são do nosso agrado: não nos pedem nada. Ao contrário, são os intermediários, os laranjas dos nossos pedidos, rezas e desejos. Os santos seculares, reais, os pequenos altruístas do nosso dia-a-dia, são perigosos.
Mas tomara que existam sempre.